25 de nov. de 2010

A metáfora da "terceira perna":

Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra – como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização? E uma desilusão.3 [...] Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema (LISPECTOR, 1968, p. 9-10). ...em breve, interpretação.
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17 de set. de 2010

O Homem Louco, de Nietzsche

Deus está morto! – Com essa frase provocativa Nietzsche sintetizou um momento histórico de sua época. Aqui, Nietzsche não quis dizer o que comumente as pessoas acreditam significar a frase, isto é, enquanto expressão do ateísmo, Nietzsche enquanto o “assassino” de Deus, uma crítica aos religiosos, a morte física de Deus, entre outras interpretações vagas que não buscam além de uma mera interpretação literal de uma frase fora de contexto.
Nietzsche tem muitas frases que chamam a atenção do leitor, é justamente para provocá-lo, para exigir que não o ouça enquanto um devoto mas que busque interpretações, para instigá-lo à lançar mais do que um olhar à realidade e desconfiar de tudo: ir para além do bem e do mal.
Buscarei aqui apresentar alguns desdobramentos dos vários que são possíveis dentro dessa instigante provocação de Nietzsche: a morte de Deus. Quem o matou? Por quê?


O homem Louco. - Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá , por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele.“Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os aos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas , e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas , se não os mausoléus e túmulos de Deus?”.

Referencia: a guia ciência (1882), no aforismo 125.





VAMOS ANALIZAR?!



Primeira constatação é que não foi Nietzsche que disse “Deus está morto”, foi o homem louco, isto é, o homem que não está preso à razão, à metafísica e a um sistema de valores moral que coloca o mundo em oposições dualistas entre o “certo” e o “errado”, a “verdade” e a “mentira”, entre outras que, ingenuamente, o homem até então, acredita que são marcas inerentes à vida.

Este homem, o louco, é antes de tudo aquele que lança sobre a vida diferentes olhares e perspectivas, não estando interessado em encontrar nenhuma “verdade” ou “mentira”, pois sabe que a vida não comporta medidas. Desse modo, ele dança alegremente com várias melodias, busca ouvir os seus impulsos e o seu corpo, usa a razão e o conhecimento para o bem-viver e sabe que as leis da razão foram inventadas por nós. Assim, ele se vê diante do inaudito, isto é, de um mundo e de uma vida que emanam uma multiplicidade de forças casuais da qual ele jamais poderá apreender em sua totalidade, e seu próprio corpo também entra nessa relação, de tal forma que os potenciais que se revelam no instante somente são apreendidos enquanto representações.
Dentro do contexto da época, a morte de Deus é um olhar de Nietzsche sobre a história, mostrando uma ruptura da teologia com o homem moderno que coloca a razão acima de todas as coisas. É interessante levar em conta que a crítica de Nietzsche não é a razão enquanto capacidade do homem, mas sim enquanto objeto de supremacia humana, isto é, como se a razão fosse a chave para todos os enigmas. Nesse sentido, a ciência moderna é tão dogmática quanto o cristianismo, na medida em que acredita que o mundo e os fenômenos carregam uma “verdade” inerente na qual o homem, debruçando-se através da razão, passa a descobrir.
O homem louco percebeu que a ciência moderna, a revolução científica, os ideais renascentistas e iluministas, o pensamento racional de Descartes, Kant e outros, tinham destronado Deus na medida em que os homens deixaram, cada vez menos, de precisar das explicações teológicas e passaram a acreditar na razão enquanto divindade. Nesse sentido, Deus apenas perdeu o trono para o “deus Razão”. Também é esta razão que os ateístas da época tomavam como fio condutor para denegrir as religiões, mas Nietzsche também atinge os ateus, pois eles deixaram de crer em Deus e passaram a crer na Razão, isto é, estão presos a dogmas, protocolos, leis e ao pensamento linear de causa e efeito.
As pessoas, por mais religiosas que fossem, passaram a ir menos até o padre buscar uma cura para suas doenças e passaram a ver na ciência uma solução melhor. Doenças que antes eram incuráveis passaram a ser facilmente tratadas graças ao desenvolvimento científico que vinha numa crescente desde o século XVII. É assim que a humanidade vai matando Deus; religiosos, ateus, cientistas e homens comuns, todos nós o matamos. A idade moderna representa então, o destronamento de Deus e, como “a grandeza deste feito é demasiada grande para nós”, o homem louco nos provoca: “Não teríamos que nos tornar, nós próprios, deuses, para apenas parecer dignos dela?” – Deixando em aberto a vinda do homem que iria transceder os valores para além do bem e do mal, o além-do-homem.
“Deus está morto” é uma “imagem” nietzschiana do homem moderno que passa a negar os valores cristãos, isto é, retira Deus do trono e coloca no lugar o Homem-racional. Este homem é aquele que despreza o corpo, os instintos, os impulsos e tudo aquilo da qual ele não pode conhecer; ele passa a acreditar que tudo tem um selo de “verdade” ou “mentira”, que algo “é” ou “não é”, além de ser dominado por um pensamento linear que não consegue olhar para os fenômenos e apreendê-los enquanto multiplicidade de relações interagindo das quais ele jamais poderá conhecer em totalidade.
A constatação de que “Deus está morto” não é uma novidade que só surgiu em Nietzsche, a razão já começava a mostrar suas limitações e o cheiro do apodrecimento de Deus já exalava forte. No bojo das transformações, os séculos XIX e XX, trazem desconfiança à razão. Marx e Freud dão força a esse movimento, apontam que aquilo que achamos conhecer não é de autoria do nosso próprio “Eu-Razão”; de um lado, em Marx, há os processos sociais que transformam nosso conhecimento, e em Freud, os processos inconscientes. Ainda, viriam as guerras e a crença da humanidade no progresso proporcionado pela razão e visto enquanto salvação e redenção de todos os problemas seria abalada.
E é aqui que surge o grande pensador Nietzsche, revelando-se quase que um “profeta” de um momento que viria a se instaurar: o contexto atual que uns chamam de pós-modernismo, mas mais importante que o termo, é conseguir ver que nossa época é marcada pelo “nada”. Nem Deus e nem Razão, o Nada e o Vazio são características do pensamento do homem atual.
Pouco nos importamos com o conhecimento enquanto busca de sentido e superação num fazer-desfazer criativo da vida; os problemas existenciais e as angústias dos homens são ocultadas em nome do homem liberal que só tem tempo para o trabalho e o acúmulo de riquezas. Buscamos aquele “conhecimento receituário”, rápido, dos cursos técnicos e operacionais que formam cada vez mais “especialistas” que só conseguem ver o mundo sob a ótica de sua lente e nada mais além disso; de tal forma que os desencontros entre os conhecimentos são gritantes; ao invés de uma multidisciplinaridade de integração dos conhecimentos, presenciamos os marxistas, liberais, psicanalistas, biólogos, historiadores, médicos, advogados, economistas, Deus e o Diabo, que se debatem em defesa de suas “verdades” na ingênua crença de que o conhecimento que eles possuem são o retrato fiel do mundo. Buscamos consolo nas mercadorias de tal forma que nossa felicidade sempre está na vitrine e nunca conosco, somos “isso” ou “aquilo” dependendo do que consumimos.
Esse homem, chamado por Nietzsche de niilista passivo, penso que é a grande contribuição enquanto desdobramento da constatação da morte de Deus. Nietzsche no século XIX anunciou o que estaria por vir. Porém, Nietzsche também vê nesse momento, onde o “nada” diante da vida surge como sintoma do homem contemporâneo, potencialidades para superação, para transvaloração dos valores de sua época. Aponta-nos o cristianismo como exemplo: o cristianismo mudou radicalmente a concepção de mundo e homem, transformou os valores até então vigentes e, quem acreditou que uma religião clandestina, surgida da miséria de alguns não iria se alastrar por todo ocidente, e ainda, influenciando boa parte do oriente, acabou se enganando. Mas isso demorou séculos, de tal forma que não devemos nos render diante da vida, no sentimento pessimista ou niilista que nos convida para adotar uma postura passiva diante de um contexto que parece esgotar todas as forças.
Para Nietzsche, são em momentos de grandes inquietações e questionamentos que podem surgir condições para que o homem resgate o seu Ser. Resta-nos saber se esse homem, que transformará os valores até então vigentes de sua época, irá criar valores para viver a vida sem ser escravo de si mesmo, isto é, aquele homem que deixa de viver somente em função de uma idéia de julgamento criada por ele mesmo, ou se os novos valores irão “quebrá-lo” novamente.
O homem louco sabia que os homens da sua época não estavam preparados para se tornarem órfãos, de tal forma que as massas riam de suas idéias. Esse viés também está presente em Zaratustra, o profeta persa e o próprio Nietzsche sabiam que suas idéias eram para homens póstumos: aqueles que conseguissem se libertar dos preconceitos e dos pesos de sua época, tornando-se espíritos livres capazes de experimentar diferentes perspectivas para além do pensamento racional linear, do platonismo, do socratismo, da metafísica e da moral que se coloca acima da vida.
Os desdobramentos da morte de Deus em Nietzsche fogem às pretensões desse artigo, encontrando sustentação não só nas conseqüências niilistas, como também, na superação à partir da compreensão da vida enquanto vontade de potência e seus enlaces com o eterno retorno. No entanto, por ora, foi a intenção mostrar o quanto a frase “Deus está morto!” é tão mal compreendida.
Uma má compreensão tipicamente do homem pós-moderno que não tem tempo para o que não flui rapidamente. Assim, folhear um livro que não for uma leitura fácil, rápida e que lhe prometa sucesso e felicidade está fora de seu interesse.
Para o “conhecimento” ele apenas reserva um olhar que passa entre frases ou trechos fora do contexto e acredita que compreendeu quem era, quem foi, e o que pensou o autor. – De tal forma, essa compreensão compreende apenas a própria ignorância que olha para o passado com os olhos do presente pedindo suplício no futuro.
Referencia: http://www.eternoretorno.com/2008/08/16/nao-foi-nietzsche-que-matou-mas-deus-esta-morto/
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13 de ago. de 2010

"Hans Staden", o homem que aprendeu a aprender com o contrário!


Minha, não-reforçada visão, sobre este Best Seller que virou filme:



Meu relato refere-se à analogia entre o filme “Hans Staden” (interpretado por Carlos Evelyn) e as discussões referentes a relativismo cultural, etnocentrismo e outridade. Analogia essa, que evidência o choque cultural sofrido pelo alemão Hans Staden. - que é um personagem real da época do descobrimento, qual chegou ao Brasil em 1554 e tornou-se um dos principais relatores sobre a geografia, a fauna e a flora tropicais. Náufrago nas costas de Santa Catarina, no sul do Brasil, e, após ter sido artilheiro para os portugueses no forte de Bertioga foi capturado pelos Índios Tupinambás, que acreditavam ser ele mais um odiado colonizador, como os primeiros colonizadores que os caçavam para escravizá-los. O levaram para a aldeia chamada Koniambebe, onde começou a estádia (sempre a pique de ser devorado) – No decorrer do filme, podemos comprovar a grande estranheza que se deu no encontro das duas culturas diferentes, onde Hans Staden tinha sua cultura como real, absoluta e principal referência, pois tomava como apontador os valores partilhados no seu grupo (sociedade) e por isso compreendia os costumes dos Índios Tupinambás como algo exótico, excêntrico, anormal, inferior, exuberante e primitivo. Isso nos levou ao conceito de etnocentrismo, que é a atitude pela qual um indivíduo ou um grupo social, se considera o princípio de referência, ou seja, julga outros indivíduos ou grupos à luz dos seus próprios valores.

A partir da análise do filme, podemos observar que a cultura Tupinambá dominava todo o sudeste do Brasil e sua linguagem (tupi) era largamente utilizada pelos colonizadores. Entretanto, vale ressalvar que o filme evidencia não só a língua tupi, mas também o português arcaico, o alemão e o francês (que era abordado pelos demais colonizadores), evidenciando assim traços da difusão cultural, que implica no movimento de transferência de características culturais e idéias de uma sociedade, ou grupo étnico, à outra. Partindo desse preceito, notamos que o intercâmbio cultural entre esses povos constituiu na modificação de ambos. Lembramos isso, nas cenas em que Staden ameaçava os índios com a fúria de seu deus, fazendo-os adiar a sua morte.

O filme, ao mesmo tempo, faz uma preciosa exposição etnográfica (método utilizado pela antropologia na recolha de dados) do povo Tupinambá, inclusive dos costumes familiares e sociais, práticas políticas, religião e, como não poderia deixar de ser, do canibalismo (ou antropofagia, que pertencia à cultura de inúmeros povos indígenas do nosso continente, da mesma forma que muitas tribos africanas e aborígenes, havia a crença de que, ao comer o inimigo, parte de suas qualidades passaria para o devorador, que era um costume dessa aldeia). Staden passou nove meses entre os Tupinambás, na ameaça de ser devorado por esta tribo de indígenas que comiam carne humana, sobretudo de seus inimigos. No entanto, o alemão conseguiu sobreviver com muito sacrifício, convivendo com seus captores. Recebeu uma esposa e pode participar de todas as atividades e eventos sociais da tribo, culminando até com a festa onde ele seria o prato principal. Com isso, ficou claro, que no convívio com uma cultura diferente, vem à flexibilidade de aceitar, com imposição de alguns limites, sem abrir mão de seus costumes, dando espaço para outros. Ratifico que Staden não ficou totalmente socializado aos costumes dos Tupinambás, mas que de forma sintetizada passou a adquirir seus hábitos, observou seus ritos, suas crenças, medos e superstições, suas tradições e rotinas, isso ficou evidenciado nas cenas onde Staden começou a realizar praticas típicas dos Tupinambás. Ocorrendo assim, uma troca igualitária de experiência humana.
Todo esse processo de observação e adaptação a cultura dos Tupinambás favoreceu Hans Staden a “receber” sua liberdade, depois de 9 meses (um navio francês que aportou na região trocou um baú de mercadorias pelo alemão, que ao chegar à Europa escreveu suas memórias, que se tornou uma das maiores obras sobre o canibalismo ritualístico entre índios na América Latina). Na consumação, chegamos à conclusão que somos realmente capazes de aprender e nos civilizar com outras culturas. Vimos além disso, que todos os sistemas culturais são intrinsecamente iguais em importância, que os aspectos característicos de cada um têm de ser avaliados e explicados dentro do contexto do sistema em que aparecem, e que, pela relação alteritária é possível exercer a cidadania e estabelecer uma relação pacífica e construtiva com os diferentes, na medida em que se identifique, entenda e aprenda a aprender com o contrário.
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12 de ago. de 2010

UM TEXTO MUITO ESCLARECEDOR SOBRE A ERA MERCADOLOGICA DO ENSINO PÚBLICO!

Para que servem as Humanidades?

Leyla Perrone-Moisés
Professora emérita da Faculdade da FFLCH/USP

(Matéria publicada na Folha de São Paulo (Caderno Mais!) de 30/6/2002)

Para além das causas específicas, reais ou alegadas, a crise atual da FFLCH/USP é sintoma de um mal-estar internacional dos estudos humanísticos. Uso aqui a palavra ‘humanidades’ não no sentido restrito de estudo das línguas e literaturas clássicas, mas no sentido geral dos estudos que têm o homem como objeto central de reflexão.
Desde a Idade Média até meados do século 20, os estudos humanísticos, sobretudo nas suas vertentes filosóficas e literárias, ocuparam um lugar de honra nas Universidades. O próprio conceito de Universidade implicava a aspiração a um conhecimento superior e integrativo que orientasse os caminhos dos homens. Os extraordinários avanços científicos e tecnológicos do século passado, recebidos não apenas como valiosos, mas também como prioritários, relegaram os estudos humanísticos a um lugar secundário. A globalização econômica e a consequente submissão de todos os países à lógica do mercado tendem agora a desferir o golpe definitivo contra esse tipo de estudo. Os tomadores de decisões - políticos, economistas, cientistas, tecnocratas - perguntam cada vez mais: para que servem as humanidades? Submetidas ao critério de uma utilidade imediata, identificada com um bem-estar do homem baseado apenas no acesso às conquistas da ciência e da tecnologia, assim como no bom funcionamento do mercado, as humanidades passaram a ser vistas como um luxo, uma perfumaria, uma inutilidade.
Concomitantemente, o enfraquecimento dos Estados e sua crescente racionalização econômica levaram a um questionamento do ensino público. A Universidade pública, como todos os serviços fornecidos gratuitamente pelo Estado, começou a ser vista como economicamente inviável. À semelhança das Universidades privadas, as Universidades públicas passaram a ser pensadas como empresas e submetidas a uma avaliação de custo-benefício. Tendo sempre em vista essa lógica de custo-benefício e considerando a crescente falta de recursos públicos para manter as Universidades gratuitas, os dirigentes universitários dos países que ainda mantêm esse ‘anacronismo’ viram, como solução transitória, as parcerias com as empresas privadas.
As Universidades privadas norte-americanas, pioneiras nesse processo e modelos mundiais, adaptaram-se naturalmente ao modelo empresarial. Os currículos e diplomas se adequaram às ‘demandas da sociedade’, que se identificam com as demandas do mercado. Os professores universitários passaram a ser avaliados mais por sua capacidade de levantar fundos (‘raising funds’) do que por suas qualidades de pesquisadores e professores. O modelo liberal-protecionista anterior, sustentado por doações de milionários beneméritos, foi substituído pelo modelo da parceria empresarial interessada, cobradora e interventora. Hoje os logotipos das empresas doadoras de fundos proliferam nos prédios universitários e nas próprias salas de aula.
A indústria farmacêutica, por exemplo, passou a dirigir os rumos das pesquisas de biologia e a influir na composição dos colegiados, como ocorreu, de modo escandaloso, numa parceria da Universidade da Califórnia, em Berkeley, com a empresa suíça Novartis, em 98. A empresa Nike suspendeu seu apoio financeiro às Universidades de Michigan, Oregon e à Brown porque os estudantes desses estabelecimentos criticaram o trabalho infantil praticado pela empresa em países pobres.Os exemplos poderiam multiplicar-se, e numerosos processos foram instaurados para examinar conflitos de interesse na atuação de pesquisadores universitários pagos por empresas.
O próprio ensino como um todo, na era da informática e da internet, tornou-se o alvo das empresas de softwares, os quais substituiriam, com vantagens econômicas, a multidão onerosa de professores e as dispendiosas salas de aula. Programas e aulas uniformizadas, além de representarem uma economia de recursos, favoreceriam a globalização econômica, pelo fato de diplomarem profissionais de formação igual em qualquer parte do mundo. Essas distorções foram denunciadas por universitários americanos, como James Engell e Anthony Dangerfield, da Universidade Harvard, que cunharam a expressão ‘the market-model university’. Apesar desses alertas, as parcerias com as empresas privadas vêm sendo adotadas no mundo todo como uma transição prudente e pudica para a desejada mas ainda indefensável privatização total do ensino e da pesquisa.
A tendência é mundial. A União Européia, ciosa de sua posição no mercado global, vem adotando diretrizes comuns de racionalização do ensino que convergem todas para a profissionalização, o encurtamento dos anos de estudo e a eliminação de diplomas ‘inúteis’. A França, que se orgulhava outrora de ser a ‘mãe das letras e das artes’, agora só pensa em eficiência e performance. Um relatório sobre a Universidade, redigido por uma comissão a pedido do ex-governo socialista, fixava como uma das principais ‘missões’ do ensino superior ‘adaptar-se às profissões do futuro e ao espírito de empresa’ (ver ‘Pour un Modèle Européen d’Enseignement Supérieur’, Paris, Stock, 98).
As primeiras consequências dessa orientação apareceram, em 2000, num projeto do Ministério da Educação que restringia brutalmente o ensino das letras, considerado elitista e supérfluo na Europa moderna. Houve reações de protesto (publiquei a esse respeito um artigo, ‘Em Defesa da Literatura’, no Mais! de 18/6/2000). Atualmente, com o avanço dos partidos de direita em toda a Europa e o eclipse da esperançosa ‘exceção francesa’, todos aqueles protestos parecem antiquados e vãos.
Evidencia-se, cada vez mais, que as desejadas parcerias são facilmente obtidas quando as empresas obtêm um retorno em forma de lucro, isto é, nas áreas científicas, tecnológicas ou diretamente econômicas e gerenciais. As humanidades, logicamente, oferecem poucos atrativos para a iniciativa privada. Na ponta do lápis, as humanidades não são rentáveis. Os sinais desse desinteresse progressivo pelas humanidades já vêm de longe. Ainda nos anos 70, um empresário bem-intencionado, que integrava então o Conselho Universitário da USP, perguntou-me: diga-me francamente, para que servem disciplinas como ‘sânscrito’ ou ‘estudos camonianos’? Ele considerava essas ‘extravagâncias’ como ônus nocivos ao bom funcionamento da Universidade. O verbo ‘servir’ ganhava já um sentido exclusivamente pragmático.
A própria história da USP espelha essa tendência mundial. Quando foi criada a Faculdade de Filosofia, em 1934, ela foi pensada como a ‘celula mater’ da Universidade. Diferentemente das faculdades profissionalizantes já existentes, ela se voltaria para os estudos humanísticos e científicos ‘puros’, para o conhecimento desinteressado, e promoveria a integração entre os diversos saberes, sem a qual não existe ‘Universidade’. O decreto de fundação da USP, assinado por Armando de Salles Oliveira, partia da afirmação de que ‘a organização e o desenvolvimento da cultura filosófica, científica, literária e artística constituem as bases em que se assentam a liberdade e a grandeza de um povo’ e apontava, como um dos fins da Universidade, ‘transmitir, pelo ensino, conhecimentos que enriqueçam ou desenvolvam o espírito ou sejam úteis à vida’. Todas essas afirmações soam, hoje, como idealistas e utópicas. Fala-se agora, brutalmente, do ‘triste fim do mito da USP’, que seria visível no colapso iminente da sua ‘ex-celula mater’.
Se lembro aqui as origens da FFLCH não é por saudosismo ou apego à tradição. É para que, à maneira reflexiva que a caracteriza, reexaminemos a sua história e pensemos o seu presente. A aliança entre o ensino profissionalizante, a pesquisa aplicada e a pesquisa pura, idealizada pelos fundadores da USP, evoluiu para o conflito, em prejuízo da última. Um artigo de Marilena Chauí, numa publicação comemorativa dos 60 anos da USP (‘Estudos Avançados’, nº 22, set-dez/94), mostrava, a partir de documentos programáticos datados de 67 a 94, as mudanças ocorridas na concepção da Universidade por parte de seus integrantes. Os ‘novos engenheiros da mudança universitária’, dizia Chauí, alegam que, ‘à medida que o modelo de produção capitalista transformou a C&T em forças produtivas, não só tornou obsoletos os antigos humanistas e pesquisadores puros, como ainda exige adequação da Universidade à nova realidade histórica, se esta não quiser perder-se em abstrações’.
Além de serem inúteis, os estudos humanísticos revelaram-se, ao longo do tempo, incômodos para os governantes e tecnocratas, por exercerem e estimularem o espírito crítico. Com sua mania de ‘perder-se em abstrações’, a FFLCH foi se tornando uma unidade problemática. Durante a ditadura militar, ela foi a mais vigiada, a mais punida com aposentadorias compulsórias de professores, com a perseguição de alunos e finalmente com a invasão e a depredação dos seus locais. Nos primórdios da era mercadológica, seus professores foram tachados de ‘improdutivos’. As repreensões que ela recebe agora, por parte de um vice-reitor economista, decorrem da mesma má vontade para com essa faculdade incômoda: falta de planejamento, irresponsabilidade administrativa.
Para agravar a situação atual, alguns docentes da própria FFLCH tendem a procurar um bode expiatório dentro dela mesma, por exemplo, nos cursos de letras, que por seu gigantismo atrapalhariam o bom funcionamento do conjunto. Sobrepondo critérios gestionais e paroquiais a critérios acadêmicos, esses docentes desejam a separação das áreas. Em vez de buscar uma melhor integração dos departamentos - e a prática de uma real interdisciplinaridade que, pela afinidade de seus objetos de estudo, seria proveitosa a todos -, optar-se-ia pela atomização da faculdade. Ora, essa atomização, além do prejuízo acadêmico, traria, a curto termo, um enfraquecimento político ainda maior de cada um dos departamentos de humanas no conjunto da Universidade. Os cursos de letras, diga-se de passagem, são os que proporcionam mais empregos para os seus diplomados e os que mais atendem, pelo ensino de línguas e literaturas, às necessidades atuais de compreensão das culturas, útil até mesmo para o bom desempenho das empresas multi e transnacionais.
A crise hoje vivida pela FFLCH, causada, como se sabe, pela falta de professores e de salas de aula, pode ter um efeito salutar. Em primeiro lugar, ela evidencia que a procura por esses cursos, apesar de seu desprestígio, é enorme. Essa unidade acolhe 20% do total de alunos da USP. Além disso, a crise põe a nu o mal-estar essencial dos estudos humanísticos na era da globalização econômica. Convém, então, responder à insistente pergunta: para que servem esses estudos?
Servem para que a Universidade continue a ser, além de um local de pesquisas científicas e tecnológicas, um lugar onde se exerce também o pensamento crítico, sem o qual esses avanços procederiam às cegas. Sem a compreensão da história dos homens, de seu habitat natural e social, de suas línguas, culturas e religiões, as conquistas científicas e tecnológicas são utilizadas ou inviabilizadas num mundo guerreiro e repartido de forma injusta. As humanidades servem para pensar a finalidade e a qualidade da existência humana, para além do simples alongamento de sua duração ou do bem-estar baseado no consumo e nas metas do FMI. Servem para estudar os problemas de nosso país e do mundo, para humanizar a globalização. Tendo por objeto e objetivo o homem, a capacidade que este tem de entender, de imaginar e de criar, esses estudos servem à vida tanto quanto a pesquisa sobre o genoma.
Num mundo informatizado, eles servem para preservar, de forma articulada, o saber acumulado por nossa cultura e por outras, estilhaçado no imediatismo da mídia e das redes. Por outras palavras: em tempos de informação excessiva e superficial, servem para produzir conhecimento. Eles servem para ‘agregar valor’, como se diz no jargão mercadológico. No ensino superior, os cursos de humanidades são um espaço de pensamento livre, de busca desinteressada do saber, de cultivo de valores, sem os quais a própria idéia de Universidade perde sentido. Por isso eles merecem o apoio firme das autoridades universitárias e da sociedade, que eles estudam e à qual servem.
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9 de abr. de 2010

"Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. " (Paulo Freire)
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